A dona de casa Mary Canitto, 78, teve seus dias de Michael Moore. A
exemplo do documentarista que colocava seu boné e empunhava um megafone
para tentar entrevistar figurões avessos a questões incômodas nos
Estados Unidos, a aposentada de São Bernardo do Campo (SP) fez o mesmo
como protagonista do documentário "Saúde S.A.".
Como em "Roger & Me", filme que narra a aventura de Moore para
entrar em contato com o presidente da General Motors, a seguidora
brasileira de Moore ficou no encalço do então ministro da Saúde,
Alexandre Padilha, e do dono da rede de farmácias Ultrafarma, Sidney
Oliveira.
"Eu deixava meu marido na cama e saía para filmar, pensando em melhorar a
saúde no país", conta. O documentário mostra as andanças de "Mary
Moore", entre abril e setembro de 2013, para cuidar do marido, vítima de
um AVC, e da filha, que se tratava de um câncer no ovário.
Ao contrário do americano, famoso por entrevistas de confronto com
câmeras ligadas e microfone em punho, o estilo da Moore brazuca é quase
maternal. "Eu sei que o senhor é uma boa pessoa... Queria saber se anda
bem de saúde", pergunta ela a Padilha.
Dadas as circunstâncias do encontro na portaria do ministério, em Brasília, nada de questões incômodas.
Em vez de inquirir a maior autoridade de saúde do país sobre "home care"
para pacientes como o seu marido –debilitado havia dois anos e meio por
causa de um derrame–, dona Mary demonstrou preocupação com o ministro.
"Eu sei que quando a pessoa viaja não consegue se alimentar direito",
prosseguiu ela, numa das cenas mais tocantes do documentário.
"Pra falar a verdade, eu tenho até vergonha", diz a aposentada. "Minha
filha viu o ministro saindo de carro e foi atrás dele correndo. Ele
voltou pra falar comigo, mas não me deu muita bola." De saída para um
compromisso, Padilha a encaminhou para a sua chefia de gabinete.
BONECO DE PAPELÃO
Menos sorte Mary Moore teve com o dono da Ultrafarma. Ele agendou
entrevista em que seria indagado sobre o mercado da saúde e preços de
medicamentos, mas desmarcou em cima da hora.
Como não atendeu aos insistentes pedidos, Mary passou a andar com um
boneco de papelão em tamanho real dele, na linha adotada pelo Moore
original. Procurado pela Folha, o empresário não quis se manifestar.
As cenas são um dos ponto de discórdia entre os diretores, Newton
Canitto e Eduardo Benain, idealizadores do documentário, e a produtora
Origami Cultural. Os produtores aprovaram junto ao Ministério da Cultura
uma versão na qual personagens polêmicos foram desfocados ou cortados.
Programada para o Festival de Cinema de Paraty no último fim de semana, a
versão dos diretores, sem cortes, não foi exibida devido a uma
notificação judicial atendendo a pedido dos produtores.
"Eles querem lançar uma versão clandestina do filme", defende-se a
produtora Edina Fijii, que teme processos. A página da personagem Mary
Moore também foi retirada do Facebook, para tristeza da personagem de
carne osso que estava adorando virar celebridade nas redes sociais.
A reportagem assistiu à versão sem cortes, que passeia mais pelos dramas
privados do que pelo debate da mercantilização da saúde no Brasil,
proposta inicial do projeto.
"Assumimos na tela o nosso fracasso em
fazer um filme político. Não conseguimos entrevistar ninguém dos grandes
laboratórios nem de planos de saúde ou autoridades para discutir o
tema", conta Eduardo.
O roteiro original, que seguia uma linha sociológica, foi abandonado,
cedendo lugar ao confessional. É quando as câmeras se voltaram para o
sobrado dos Canitto no ABC paulista.
DESPEDIDA DO PAI
Além de dirigir a mãe, Newton, que é do time de roteiristas da Rede
Globo e foi secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, acabou
registrando a despedida do pai.
Athenoges Canitto morreu em outubro de
2013, pouco depois das filmagens.
"O filme é dedicado a ele", conta o diretor de 40 anos. "Filmar a minha
família doente foi uma espécie de terapia. O filme é muito pessoal",
completa Newton.
Em uma das cenas finais do documentário, seu Athenoges se despede dos
familiares com uma frase do astrônomo Carl Sagan. "Nós somos energia e
somos para sempre. Sigam seus sonhos."
Dona Mary agora milita pelo lançamento de sua primeira incursão
cinematográfica. "Não tem nada de mais no filme. Assistir ao
documentário me deixa mais alegre", diz ela, que fez exibições caseiras
para os parentes. "É bom as outras pessoas também poderem ver que a vida
é assim.
Coisas boas e ruins vão e vêm. Eu tive muita força."
Lourdes, sua filha mais velha, também. Aos 45 anos, ela se viu
coadjuvante do filme do irmão. "Papai ficou doente e eu era muito
apegada a ele. Um ano depois, senti um inchaço e fui fazer exames. O
cisto no ovário era câncer."
Levou três meses para conseguir ser operada. "Estava trocando de emprego
e o meu antigo convênio queria me chutar. Entrei com mandado de
segurança para consegui ser operada."
Participar do documentário foi uma "catarse". "Saí do foco da doença.
Não somos só nós. São problemáticas de saúde, que a população lida todos
os dias." Deixou-se filmar raspando a cabeça, quando os cabelos
começaram a cair pós-quimioterapia.
"Por que isso não pode ser mostrado no cinema?", pergunta dona Mary, em seu momento Michael Moore, já no fim da entrevista.
Logo em seguida, no entanto, ela volta à pele da mãezona. "Bastante
saúde e coisas boas pra você", despede-se. Como fez com o ministro e
como teria feito, provavelmente, com Sidney Oliveira se tivesse sido
recebida. Saúde para todos nós, dona Mary.
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