RESUMO Impulsionado pela crise e propelido pela internet, que amplifica ideias antes à sombra, discurso de ódio se acirra no país. O autor entrevista o jovem de extrema direita que atacou a presidente Dilma em Stanford e ouve estudiosos sobre o clima de intolerância e a dificuldade de acomodar conflitos no Brasil atual. Este texto estará na edição impressa da "Ilustríssima" de domingo (9), além de artigo de Mario Sergio Conti sobre José Dirceu, preso no começo desta semana.
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No dia 1º de julho, Dilma Rousseff visitou a Universidade Stanford, na Califórnia. Quando eram conduzidas por Condoleezza Rice a um encontro com empresários e autoridades acadêmicas, a presidente e sua comitiva foram surpreendidas pelos berros, em português, de um homem de boina, que registrava tudo com a câmera do celular: "Terrorista! Comunista de merda! Assassina!", antes de ser expulso do recinto. Postado na página do Facebook do próprio autor, o vídeo foi visto mais de 1,5 milhão de vezes.
"Foi tudo premeditado e planejado", diz à Folha, com orgulho, o estudante de graduação em ciências políticas na Universidade Estadual de San Francisco Igor Gilly, militante de direita e membro do grupo Revoltados Online. "Eu e outro estudante nos infiltramos na comitiva do PT, fingindo que éramos estudantes de Stanford."
Na sua página no Facebook, Gilly se apresenta como "Igor, o nacionalista, figura pública", ao lado de uma foto na qual aparece com condecorações maçônicas na lapela. "Figura pública, no sentido de poder orientar os brasileiros a lutar por um Brasil melhor", diz.
Entre os homens que o inspiraram estão o general Castelo Branco ("homem de honra, que salvou o Brasil em 64"); Bismarck ("grandíssimo estadista e conquistador, responsável pela segunda maior expansão germânica") e Gabriele d'Annunzio ("grande revolucionário, que proclamou um Estado independente quando a Itália estava debaixo da ditadura de Mussolini").
Na verdade, em 1919, em reação à Conferência de Paris, D'Annunzio ocupou a cidade de Fiume, onde se autoproclamou "duce" (guia supremo) antes de ser desalojado pelas tropas italianas. Simpatizante do fascismo, o escritor teve a estética e as ideias em seguida celebradas pelo regime de Mussolini, que chegou ao poder em 1922.
Gilly nasceu em Brasília, em 1992. O pai é empresário, de direita, antipetista. A mãe, advogada, "é mais fisiológica", nas palavras do filho. A família se divide entre católicos e evangélicos. Gilly toca piano, canta e é fã de Frank Sinatra e de Beethoven ("Música clássica é o que faz minha alma se elevar").
Seu ódio pelo PT começou quando Lula foi eleito. Tinha 11 anos. Aos 16, um treinamento no Instituto Nacional de Excelência Humana (que, como descreve sua página na internet, tem por missão "fazer com que as pessoas descubram e usem seu potencial interior infinito") o "preparou para a vida". Desde então, embora não se considere um discípulo fiel, pratica o método da programação neurolinguística, que tem entre suas "regras de ouro" a divisa "conquiste um objetivo e se faça feliz".
Na adolescência, também foi membro da Ordem Demolay, uma organização paramaçônica para jovens, que prega, entre outras coisas, a cordialidade. "Não tem contradição nenhuma. A Ordem também prega o patriotismo. E eu considero Dilma uma terrorista, pior que bandido", diz Gilly, justificando sua intervenção em Stanford, antes de citar Gandhi como modelo de luta. "É verdade que me alterei um pouco. Não tinha nenhum guarda, se eu fosse um cara descontrolado, podia ter batido nela ou coisa muito pior. Mas não faria uma coisa dessas. Esse tipo de atitude tem que ser tomada pela polícia, e não por civis."
Gilly considera Olavo de Carvalho (autor de "O Mínimo que Você Precisa Saber Para Não Ser um Idiota", ed. Record, entre outros) seu mentor. "O que aconteceu lá em Stanford me levou a um patamar de mais responsabilidades. Agora, tenho seguidores, tenho mais responsabilidade ao falar e ao agir, entendeu? É o Olavo de Carvalho quem me orienta sobre quais serão os próximos movimentos, ele me orienta sobre tudo. Não só eu, né? Muita gente."
GOVERNO PARALELO
Entre os próximos passos, estão a manifestação internacional de 16 de agosto, pelo impeachment (no vídeo de convocação postado em sua página, Gilly diz, em tom solene, que está pronto para "morrer pela pátria"), e a criação de um governo paralelo para se opor ao PT.
"Esse governo vai simular o Congresso, vai se manter por doações e vai preparar uma classe política para, caso o PT caia, assumir o poder. As pessoas vão poder se tornar cidadãs e legitimar esse governo paralelo por meio de um website. Se você acha que esse governo paralelo te representa, vai lá e assina uma declaração que é esse governo que tinha que estar no poder, e não o PT."
Gilly prefere não se manifestar ainda sobre o cargo que ocupará no governo paralelo. Enquanto isso, apoia o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) para presidente: "Bolsonaro é a grande promessa de 2018! Não sou só eu que o apoia. São 90% dos brasileiros. Não tem pesquisa, mas basta ver o número de pessoas colocando a faixa do Bolsonaro na foto do perfil do Facebook. E olhe que ainda estamos bem longe da época de eleição! Temos grandes chances de ganhar e fazer uma grande virada ideológica no Brasil".
Para essa "virada ideológica", o Brasil ideal é "um país onde não se pague mais do que 10% de imposto e onde as Forças Armadas são valorizadas como nunca antes".
Como é que se paga pelas Forças Armadas sem impostos? "Faz um corte nos gastos públicos e assistencialistas. Só aí você já corta 80% dos gastos. Os militares têm que ter a imagem de homens de honra, de homens de glória", explica Gilly, uma semana antes de o almirante da reserva Othon Luiz Pinheiro da Silva, presidente licenciado da Eletronuclear, ser preso, acusado de receber R$ 4,5 milhões em propina de empreiteiras.
Desde que se encontrou com Dilma em Stanford, Gilly também acredita que represente 90% da população brasileira. Como chegou a esse número? "Pelas mensagens de carinho e apoio que recebi. Ainda não consegui responder todas", diz.
DISCURSO
É difícil saber que parcela da população se identifica realmente com esse discurso. Segundo pesquisa de opinião do Datafolha, dos 100 mil manifestantes que compareceram à avenida Paulista em 12 de abril, 77% defendiam o impeachment, mas apenas 2% eram ligados a grupos da direita radical (1% do Movimento Brasil Livre e 1% do Revoltados Online).
"Você tem que circunscrever para não ter o efeito contrário de inflar quantitativa e qualitativamente o peso que essas pessoas têm na sociedade. Há uma direita surgindo no Brasil, que é democrática e liberal, pela primeira vez vamos ter um liberalismo de fato. Eles querem o impeachment, sou contra, mas eles estão dizendo que está na Constituição. É diferente de uma direita autoritária, é diferente do SOS Forças Armadas", diz Marcos Nobre, cientista político e professor do departamento de filosofia da Unicamp, no mesmo dia em que o presidente da Câmara, acusado de receber R$ 5 milhões em propina, é aplaudido efusivamente em reunião com empresários num hotel de São Paulo.
O acirramento do discurso de ódio não é um fenômeno brasileiro. Manifestações racistas e homofóbicas têm aumentado em países com uma experiência democrática bem mais longa e estável, como Estados Unidos e França.
O ódio e os preconceitos existem na sociedade, e a democracia se traduz na forma como lida com esses conflitos. A internet e as redes sociais apenas revelaram opiniões que antes não eram ditas em público, por pudor ou por falta de meios, amplificando polarizações políticas, sociais e culturais que podiam passar despercebidas entre vizinhos ou até mesmo entre membros da mesma família.
No Brasil, a precariedade da educação e as peculiaridades de uma experiência democrática ainda imatura, combinadas com uma crise política, social e econômica de dimensões gravíssimas deram ao confronto um aspecto de guerra civil. O ódio ao governo passou a servir de pretexto não apenas para expulsar um ex-ministro (Guido Mantega) de um restaurante ou de um hospital de São Paulo, sob gritos de injúria mas também para intimidar um frentista haitiano e negro, trabalhando legalmente em um posto de Canoas, no Rio Grande do Sul, sob a justificativa de que era estrangeiro e estava tomando o emprego de brasileiros, graças a uma suposta maquinação do PT.
ÔNUS
"Antes, havia uma repressão maior desses sentimentos. Você tem variáveis no Brasil que se agravaram, ficaram mais claras. É o ônus que toda sociedade igualitária carrega", diz o antropólogo Roberto DaMatta.
"O racismo surge porque há competição por empregos. É uma crise igualitária, uma crise por demanda de igualdade. Quanto mais igualdade, mais competição. Consequentemente, você vai inventar outros códigos, que não são democráticos, que é exatamente o que explica o racismo americano e a segregação depois da Guerra Civil. Isso é agravado pela crise econômica. Tem um ressentimento muito grande contra este governo. O que está acontecendo hoje no Brasil é resultado de um sufocamento político e ideológico de uma administração que aparelhou todo o Estado e que foi incompetente. O PT dizia que não roubava e olhe no que deu. Não vejo essa crise cultural que você diz existir. Há uma crise política. Mas também há maior liberdade. Hoje, ficou mais tranquilo eu poder dizer qual é a minha posição política, de uma maneira mais clara do que em 1964, quando todo o Brasil que pensava era de esquerda."
Essa "vivência mais igualitária", inédita na história política, institucional e econômica do país, seria, segundo o antropólogo, o fundamento sociológico das manifestações mais agressivas: as pessoas cobram mais eficiência, acusam mais, exigem mais.
Não é exatamente o que se vê no vídeo do homem que, vestindo camuflagem militar, intimida o frentista haitiano com seu discurso xenófobo e antipetista e que, dias mais tarde, foge de um repórter do "CQC" ao ser confrontado com seus antecedentes criminais.
Em "Carnavais, Malandros e Heróis" (1979), DaMatta sintetizou em uma única frase –"você sabe com quem está falando"– o autoritarismo personalista do "homem cordial", conceito formulado por Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil".
"Hoje, acabou o 'você sabe com quem está falando?'. Esse é o grande problema. Há uma crise de cordialidade, mas essa crise começa com a presidente. Onde é que está o grande articulador que nós sempre tivemos? No desenho institucional, os atores não correspondem aos papéis. O papel requer mais dos atores do que eles são capazes de dar. O que agrava a crise da cordialidade é o Executivo, que é pilotado por uma única pessoa, e nunca se viu presidente tão avesso a fazer aquilo que deve fazer o Executivo moderno numa república democrática. Ela tem 8% de aprovação! Isso explode o campo de forças ideológicas, culturais e sobretudo simbólicas."
Marcos Nobre lembra o chamado "contrato do fio do bigode" –o acordo que, pressupondo a confiança absoluta na outra parte, abdica da formalidade do direito– para ilustrar o princípio da cordialidade: "Tem um lado extremamente violento aí, que é o da quebra do acordo. A cordialidade tem uma violência presente nela o tempo inteiro. É violência e personalismo juntos. Mas a tese da cordialidade já não faz sentido. O Brasil ficou muito mais complexo. A questão é: qual é a natureza do conservadorismo brasileiro?".
Segundo Nobre, as divisões e polarizações políticas da sociedade brasileira não encontram canal de expressão na política oficial –nem nas bancadas do Legislativo nem no Executivo–, devido a um fenômeno que ele chama de "pemedebismo". "Você tem um paquiderme político no meio do sistema, seja qual for o governo. O paquiderme anda bem devagarinho, qualquer mudança é sempre muito lenta. É isso o que o PMDB garante. É a expressão mais profunda do conservadorismo da democracia brasileira."
O sistema político não consegue refletir nem mesmo a polarização das eleições. Não se pode dizer, por exemplo, que o governo do PT seja de esquerda: "O paquiderme nunca é de direita ou de esquerda. E quem ganha as eleições tem que levar o paquiderme consigo. 'The winner takes it all'". Como o sistema não consegue refletir as polarizações sociais reais, elas acabam se acirrando na sociedade.
POPULISMOS
O Brasil está inserido dentro de um quadro mundial de ressurgimento dos populismos. Em geral, são movimentos oportunistas que instrumentalizam a insatisfação das populações diante do fracasso de projetos de governo de esquerda e centro-esquerda paralisados pelas pressões e contradições da crise econômica.
Na França, por exemplo, a Frente Nacional, de Marine Le Pen, se aproveita da imagem de um governo socialista hesitante para forjar um discurso retórico e inflamado, fazendo preconceitos racistas e xenófobos passarem por soluções. No Brasil, essas soluções passam cada vez mais pelo mito de uma moral religiosa obscurantista contra a Gomorra da corrupção e do fisiologismo. É claro que um exame mais atento e reflexivo dos fatos bastaria para desconstruir esses discursos e desmascarar aqueles que os proferem.
"Não tenho elementos para fazer uma relação entre aumento de discurso religioso evangélico e mais ódio político", diz DaMatta. "O que existe hoje no Brasil é uma crise financeira, que está atingindo todo mundo, inclusive a mim, pessoalmente."
Cenas recentes de linchamento (ou de incitação ao linchamento, como no caso de pedestres que pediam a morte de dois meninos negros, confundidos com bandidos, na zona sul do Rio) mostram como barbárie e populismo se retroalimentam.
Quando se manifestou contra o linchamento de um rapaz que, acusado de roubo, no Maranhão, foi atado a um poste e espancado até a morte, o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) se tornou vítima de uma campanha de calúnias e injúrias na internet, orquestrada por um blogueiro que o acusava de chamar os maranhenses de psicopatas.
"O ódio sempre existiu. A novidade tem a ver com as redes sociais e com a internet", diz Wyllys. "Isso se complexifica na medida em que se articula com o débito educacional brasileiro e com outros problemas históricos do país, como o racismo, a truculência e a violência. Antes, uma pessoa homofóbica ou racista expressava sua opinião num âmbito muito restrito, que tinha a ver com seu círculo de relações. Com as redes sociais, não só ela tem um alcance muito maior mas também se conecta e se articula em rede com outras pessoas que pensam como ela. E passa a ver o outro como uma alteridade radical, com a qual não se estabelece diálogo. O outro virou uma ameaça permanente. O outro é o alien, o oitavo passageiro, aquele que você tem que eliminar."
Wyllys trava uma luta diária com as palavras na internet, onde a ignorância se confunde com a má-fé e a manipulação: "As pessoas se plugaram sem a capacidade de distinguir entre um discurso e outro, entre o que é verdadeiro e o que não é, sem distinguir o que é ironia, metáfora, as figuras de linguagem que a gente aprendia na escola; 30% dos diplomados pelo ensino superior brasileiro são analfabetos funcionais. Essas pessoas não têm habilidades fundamentais para o entendimento humano e para a comunicação. Isso só pode gerar confusões terríveis e ódio".
CONFRONTOS
"O problema é o 'nós contra eles'", diz o jurista Wálter Fanganiello Maierovitch, presidente do Instituto Giovanni Falcone de Ciências Criminais e de Educação à Legalidade Democrática. "O próprio Lula –velha vítima do preconceito de classe por parte de uma elite conservadora – se tornou protagonista de acirramentos e confrontos odiosos. Com esse discurso, ele não se bate por uma sociedade mais justa, procura apenas a manutenção do poder."
Referências de Lula, Dilma e militantes do PT ao reacionarismo da "elite branca" não ajudaram a elevar o nível do debate. Em fevereiro de 2013, militantes do PT chegaram a chutar e xingar uma jornalista da Folha que cobria a entrada de uma festa em comemoração dos dez anos do partido no governo federal.
A instrumentalização política da ignorância e do preconceito não é, porém, exclusividade da internet. Maierovitch é veemente no repúdio a qualquer tentativa de censura ou controle das mídias. Os excessos e ofensas devem ser resolvidos judicialmente, como em todos os Estados democráticos, em termos de responsabilização criminal por calúnia, injúria ou difamação.
"O que precisamos é fortalecer as polícias e os ministérios públicos e reformar o Judiciário, que precisa ser independente. Ainda mais em tempos em que os presidentes do Senado e da Câmara acham que o Executivo poderia impedir que sejam investigados", diz.
DESCOMPASSO
Exemplos que expõem cada vez mais o descompasso entre a política institucional e a sociedade não faltam. "A sociedade se democratizou muito mais rápido que o sistema político. Você deu voz para pessoas que antes não tinham voz. E esses movimentos foram turbinados pela internet. Ao mesmo tempo, você não tem uma formalização da convivência para a resolução do conflito", diz Nobre.
A peculiaridade de um sistema político no qual noções como direita e esquerda já não esclarecem muita coisa tampouco ajuda como modelo ou exemplo de como lidar com o conflito e a diferença.
"Como o sistema político não tem esse lado pedagógico, quando a coisa explode, ela explode de uma forma completamente desorganizada. E aí chega alguém e diz: Olha, você pode organizar o seu discurso se você odiar o outro. E você canaliza um potencial, que é democrático, na direção de algo regressivo. O discurso de ódio é um discurso fácil de organizar."
Antigos centros de referência e de informação, como a mídia tradicional, também já não servem de mediadores culturais. O monopólio dessa mediação foi pulverizado pela internet e pelas redes sociais. Há aí um potencial enorme de democratização. O que falta, segundo Nobre, é uma formalização dessas novas instituições e do espaço público como um espaço de iguais, onde o outro possa ser reconhecido e tratado como cidadão, não importando quem seja.
Como é possível refletir e dialogar sem referências?
"A esquerda acabou no Brasil, do ponto de vista político. O PT vai ser dizimado. Mas o acirramento do discurso de ódio cria polarizações artificiais que têm consequências muito mais conservadoras do que poderiam ser. Se você deixar de falar com os 87% que são a favor da redução da maioridade penal, vai falar com quem? Há gente aí dentro que também é a favor das relações homossexuais, por exemplo. Vamos jogar todo mundo no colo do Eduardo Cunha? Estamos no meio da maior crise política desde a queda da ditadura. É muito pior que o impeachment. É muito pior que tudo. É a hora de propor pontes de diálogo."
BERNARDO CARVALHO, 54, é escritor e jornalista, autor de, entre outros, "Reprodução" (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Jabuti de 2014.
RODRIGO ANDRADE, 53, é artista plástico.
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