Auditoria apontou que obra teve custos superfaturados em mais de 1.800%
BRASÍLIA— A Petrobras criou "empresas de papel" para construir e
operar a rede de gasodutos Gasene, conforme constatação da Agência
Nacional de Petróleo (ANP) reproduzida numa auditoria sigilosa do
Tribunal de Contas da União (TCU). O trecho do empreendimento que fica
na Bahia - e, de acordo com técnicos do tribunal, teve os custos
superfaturados em mais de 1.800% - foi inaugurado com pompa em 26 de
março de 2010 pelo governo federal. Oito dias depois, a então
ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, deixou o governo para se
candidatar à Presidência da República. Ela foi à festa de inauguração em
Itabuna (BA) com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o
presidente da Petrobras na época, José Sérgio Gabrielli, e a então
diretora de Gás e Energia da estatal, Graças Foster, atual presidente da
empresa.
Auditores do TCU constataram que a ANP autorizou a construção e a
operação do gasoduto sem analisar os documentos das empresas e sem
avaliar se o projeto era adequado. A agência reguladora pediu uma cópia
do contrato de operação e manutenção do trecho entre Cacimbas (ES) e
Catu (BA) em 4 de março de 2010, conforme ofício anexado ao processo que
tramitou na ANP. Não houve exame do contrato, "repetindo o mero check list
promovido na fase de autorização para a construção", escreveram os
auditores. Três semanas depois, Lula e Dilma inauguravam o trecho, hoje
em operação.
Documentos revelam como as empresas criadas para a construção da rede
de gasodutos - uma engenharia financeira para dar aspecto de
empreendimento privado ao negócio - tinham características de fachada.
Um contrato de prestação de serviços foi assinado em maio de 2005 entre a
Transportadora Gasene S.A., constituída pela Petrobras para tocar as
obras, e a Domínio Assessores Ltda., um escritório de contabilidade no
Rio. As duas empresas aparecem no contrato com o mesmo endereço: Rua São
Bento, no quinto andar de um prédio no Centro. O próprio contrato
menciona que o escritório de contabilidade "concordou em fornecer à
contratante um endereço para abrigar sua sede".
O mesmo documento diz que o dono da Domínio, Antônio Carlos Pinto de
Azeredo, se comprometia a exercer o cargo de presidente da
Transportadora Gasene, função ocupada entre 2005 e 2011. Em reportagem
publicada pelo GLOBO em 24 de dezembro, Azeredo declarou que era apenas
um "preposto" da Petrobras no cargo, com o exercício de uma "função
puramente simbólica". O fato de existir um laranja à frente da empresa,
responsável por investimentos de R$ 6,3 bilhões, corrobora o aspecto de
fachada do empreendimento - uma sociedade de propósito específico (SPE)
com capital privado, administrada por uma empresa chinesa contratada sem
licitação e com comprovados gastos públicos, conforme a auditoria.
"A ANP considerou que as firmas transportadoras criadas nesse arranjo
financeiro 'seriam apenas empresas de papel'", constataram os técnicos
do TCU no relatório da auditoria. A subsidiária da Petrobras responsável
por operar as redes de gasoduto é a Transpetro, que assinou contrato
com a Gasene.
A interpretação da ANP sobre o aspecto de fachada do empreendimento é
compartilhada pelos auditores do TCU. "Em toda a cadeia quem estabelece
os desígnios é a Petrobras. Desse modo, assevera-se que este contrato
para operação e manutenção com a Transpetro e os demais realizados
visaram apenas a formalizar a relação de subordinação entre as
sociedades, de modo a dar contornos legais e de aparente normalidade a
toda estruturação financeira que foi desenvolvida", cita a auditoria,
que ainda será votada, mas já foi enviada para os procuradores da
República responsáveis pela Operação Lava-Jato para que seja incorporada
às investigações de corrupção na estatal.
Mesmo tendo apontado a existência de "empresas de papel", a ANP
abdicou da atribuição de fazer uma análise técnica do empreendimento,
conforme conclusão de inspeção feita em três processos da agência
relacionados ao Gasene - um com pedido de autorização da construção de
um trecho, outro com instrução de decreto de utilidade pública para o
gasoduto e um terceiro sobre aprovação dos projetos de referência. "Em
termos de análise técnica da ANP, a inspeção constatou que ela
inexistiu, limitando-se, nos processos de autorização para construção e
operação, a checar a entrega dos documentos exigidos", afirmam os
auditores.
"Chama atenção o fato de um projeto dessa magnitude, na ordem de R$
3,78 bilhões (valor referente somente ao trecho Cacimbas-Catu), não ter
avaliação crítica dos estudos apresentados pela Petrobras para efeitos
de autorização para a construção", afirmam. Segundo a auditoria, a ANP
deixou de avaliar a viabilidade do projeto bilionário, embora o capital
social da empresa contratada fosse de apenas R$ 10 mil, indicando que
poderia tratar-se de fachada.
A inauguração do trecho do gasoduto em Itabuna, na Bahia, teve a
participação de autoridades graduadas do governo Lula. Cerca de 5 mil
pessoas compareceram ao parque de exposições. Dilma discursou com
referências ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O Gasene,
apesar da operação financeira para configurá-lo como empreendimento
privado, foi incluído no PAC e contou com 80% de financiamento pelo
BNDES. Uma empresa chinesa, a Sinopec International Petroleum Service
Corporation, foi subcontratada sem licitação, por R$ 266,2 milhões, para
gerenciar o gasoduto.
- O PAC não é ficção, e o Gasene hoje prova isso. Demos um show de competência aqui - discursou Dilma.
Fiador da candidatura de Dilma, eleita em outubro daquele ano, Lula também discursou:
- Essa obra significa mais um degrau na conquista de independência do
Nordeste brasileiro. Nós não estamos tirando nada de nenhum lugar do
Brasil.
Participaram ainda Gabrielli, que é da Bahia, e o governador do
Estado na ocasião, Jaques Wagner (PT), reeleito naquele ano, além de
Graças Foster e do presidente da Transpetro, Sérgio Machado. Gabrielli
responde a acusações relacionadas à sua gestão, como o prejuízo de US$
792 milhões na compra da refinaria de Pasadena, no Texas, e o
superfaturamento na construção da refinaria de Abreu e Lima (PE).
Wagner é o atual ministro da Defesa e um dos principais conselheiros
de Dilma. Graça balança no cargo devido à crise na Petrobras. E Machado,
incriminado por delatores do esquema de desvio de recursos da estatal,
licenciou-se do cargo de presidente até ontem.
O Gasene foi incorporado pela Transportadora Associada de Gás (TAG),
subsidiária da Petrobras, em janeiro de 2012, com ativos de R$ 6,3
bilhões. Os três trechos já foram concluídos: são 130 quilômetros entre
Cacimbas e Vitória (ES); 303 quilômetros entre Cabiúnas (RJ) e Vitória e
954 quilômetros entre Cacimbas e Catu.
A auditoria do TCU foi feita no trecho mais longo. Além de
superfaturamento, os técnicos apontaram dispensa ilegal de licitação,
inexistência de projeto básico e pagamento sem a prestação do serviço. A
votação na sessão reservada de 9 de dezembro foi suspensa devido a
pedido de vista. O relatório aponta como responsáveis pelas
irregularidades Gabrielli e o ex-presidente da Transportadora Gasene
Antônio Carlos Azeredo. Os técnicos sugerem a aplicação de multas aos
dois.
Ao GLOBO, a Petrobras informou que "já apresentou esclarecimentos
detalhados nos processos de auditoria do TCU no Gasene e aguarda sua
manifestação". A ANP informou que "só vai se pronunciar depois da
publicação do acórdão do TCU. O acórdão é o instrumento final pelo qual o
TCU se pronuncia como órgão fiscalizador", informou a agência.
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