domingo, 17 de agosto de 2014

Morto, Eduardo Campos deu vida à terceira via na política

Os restos mortais de Eduardo Campos chegaram à base área de Recife na noite passada, às 23h05. Marina Silva e a viúva Renata foram receber o esquife. Lá estavam também, entre outros, os cinco filhos do morto. Excetuando-se o caçula Miguel, de sete meses, os demais apareceram, por assim dizer, uniformizados. Vestiam camisetas amarelas. Na altura do peito, uma inscrição: “Não vamos desistir do Brasil”.

A frase fora pronunciada por Eduardo Campos no encerramento da entrevista que ele concedera ao Jornal Nacional, na noite da última terça-feira, horas antes de embarcar, na manhã do dia seguinte, no jatinho que o transportaria para a morte. Seguiram-se ao acontecimento funesto as indagações que costumam perseguir os mortos moços, sobretudo os que nascem condenados a um futuro promissor.

Mas já? E por que ele, no frescor dos seus 49 anos? Por que assim, despedaçado num mergulho fatal do avião no solo? Por que agora, a menos de dois meses da sucessão presidencial? As interrogações e as circunstâncias da tragédia fizeram de Eduardo Campos um cadáver paradoxal —cheio de vida.

                       Velório de Eduardo Campos




17.ago.2014 - O ex-presidente Lula brinca com Miguel, o filho mais novo de Eduardo Campos, durante o velório do ex-governador, no Palácio do Campo das Princesas, em Recife (PE), neste domingo (17). Eles são observados por José Serra (ao fundo) e pela viúva de Campos, Renata Ricardo Moraes/Reuters

A inscrição na camiseta dos filhos, ecoada numa faixa fixada na lateral do caminhão de bombeiros que desfilou o impensável pelas ruas da capital pernambucana, potencializa no imaginário coletivo a sensação de que a morte, às vezes, não mata. O corpo de Eduardo Campos —ou o que restou dele— será enterrado neste domingo como um homem realizado. Ele sobrevive na disputa presidencial com chances de obter o que não conseguira produzir na fase em que ainda respirava: a abertura de uma terceira via.

Vice de Eduardo Campos, Marina Silva vai à cabeça da chapa na próxima quarta-feira. Com um potencial de votos duas ou três vezes maior do que a do titular, a ex-coadjuvante reassume o papel de protagonista como um estorvo para Dilma Rousseff. Prevalecendo a lógica, a esperança da candidata do PT de reeleger-se no primeiro turno está na bica de ser enviada para o beleléu.

Convertida numa espécie de viúva-política de Eduardo Campos, Marina pode tornar-se uma ameaça também para Aécio Neves. Beneficiária da atmosfera de comoção, ela entra na briga com chances de ultrapassar o candidato tucano. Se tiver competência para combinar a utopia da “nova política” com uma dose do pragmatismo do companheiro morto, Marina flertará com o segundo turno.

Antes da tragédia, o eleitorado parecia fadado a lidar com uma pergunta que, pela sexta vez em duas décadas, marca a sucessão no Brasil: PT ou PSDB? Numa entrevista que concedera em maio de 2013 à revista Teoria e Debate, da Fundação Perseu Abramo, o presidente do PT federal, Rui Falcão, minimizara as chances de Eduardo Campos tornar-se um ator relevante na disputa de 2014.

“Não acredito que haja espaço para uma terceira via. Há o governo e a oposição”, dissera Falcão. Ele previa que faltaria nexo a Campos quando ele tivesse de injetar ideias em seu discurso: “É possível que haja mais de uma candidatura de oposição, mas não há candidatura do mesmo campo da presidenta Dilma.” Para Falcão, haveria um replay do Fla-Flu que faz de todas as sucessões presidenciais meras gincanas do PSDB contra o PT.
“Esses são os dois projetos que têm concepções diferentes sobre o Brasil. Um, a concepção liberal privatista; e nós, uma concepção de desenvolvimento sustentável, de projeto social e de um Brasil em outro patamar, diferente do que tivemos como legado”, afirmara Falcão.

Nessa época, Marina Silva ainda recolhia assinaturas de apoiadores para fundar a sua Rede Sustentabilidade. Mas Falcão desdenhava da ex-petista: “Não tem partido, nega partido, mas está tentando construir um. Ainda é um projeto de candidatura. Se vier, será com o discurso da eleição passada, com alguns ajustes, mas já foi testado e aparecerá como oposição.”

Decorridos cinco meses dessa entrevista, a Rede teve o registro negado pelo TSE. E Marina abrigou-se no PSB de Campos. Para surpresa geral, aceitou a condição de segunda da chapa. Fez isso numa fase em que sete legendas lhe ofereciam a vaga de presidenciável. Entre elas o PPS de Roberto Freire.

Imaginou-se que Marina proporcionaria a Campos uma transfusão de parte dos 20 milhões de votos que obtivera em 2010. Porém, transcorridos dez meses de campanha, o candidato do PSB não conseguiu firmar-se como meio-termo viável entre Dilma e Aécio. Parecia que lhe faltavam firmeza e credenciais para sintetizar o sentimento de mudança escancarado nas pesquisas.

Eduardo Campos mordia Dilma. Mas soprava Lula. Ele enxergava méritos na era FHC. Mas ficava tiririca quando Aécio dizia que estariam juntos no futuro. A ‘nova política’ de que tanto falava o parceiro de Marina era um conceito vago, condicionado à geografia. Em Brasília, a “nova política'' serviria para “mandar Sarney à oposição”. Em Pernambuco, era uma coligação de 21 partidos.

Eduardo Campos dizia que Dilma entregaria um país pior do que recebeu. E Lula retrucava: “Creio que o Eduardo não pode exagerar nas críticas porque ele sabe que é o mesmo projeto, o projeto do qual ele participou e que tantos avanços trouxe para Pernambuco e o Brasil.”

Para complicar, PSB e Rede têm dificuldades para chegar a um consenso sobre o mundo, antes de reformá-lo. Vivem um drama descrito na piada de Millôr Fernandes sobre a tecnologia da engenharia chinesa: de um lado da montanha, colocam 10 mil chineses para cavar. Do outro lado, mais 10 mil. Se os dois grupos se encontram no meio da montanha, inaugura-se um túnel. Se não se encontram, inauguram-se dois túneis.

Ao continuar cheio de vida depois da morte, Eduardo Campos oferece aos sobreviventes a oportunidade de cavar um único túnel. As altas taxas de eleitores sem candidato indicam que a polarização da política brasileira entre PT e PSDB já torrou a paciência de muita gente. As duas legendas são identificadas como responsáveis pelo fisiologismo e pelos atentados ao erário praticados em nome da governabilidade.

Para enfrentar o PT, o tucano Fernando Henrique uniu-se ao rebotalho da política nacional. Para prevalecer sobre o PSDB, Lula levou a parceria com o arcaico às fronteiras do paroxismo. Num cenário assim, a morte prematura de personagens como Eduardo Campos, a despeito de todas as suas contradições, leva as pessoas a refletirem sobre as mortes procrastinadas.

Na política brasileira, há tantos vivaldinos que as pessoas ficam tentadas a enviar-lhes coroas de flores ou a atirar-lhes na cara a última pá de cal. Vem daí a atmosfera de comoção que permite a Eduardo Campos respirar nos dizeres da camiseta dos filhos: “Não vamos desistir do Brasil”.

Em momentos como o atual, a história parece se mover. Resta saber como Marina Silva irá percorrer a terceira que, morto, Eduardo Campos ressuscitou. Em 2010, Marina costumava dizer que um governo ideal reuniria os melhores quadros do PT e do PSDB. Eleita, cuidaria de unir as duas forças. Terminou virando a escada que o tucano José Serra subiu para chegar ao segundo turno na condição de candidato favorito a ser derrotado por Dilma. A diferença é que não havia nessa época o voto-comoção.

Fonte: Blog do Josias

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