Ninguém nomeia um procurador sem ter a mais absoluta confiança no outorgado. Quando nomeamos mandatários público, agimos de modo inconsequente, irresponsável e leviano
20/06/2016 - 15h00
Urna eletrônica (Foto: Arquivo Google)
Nelson Paes Leme, O Globo
Os gravíssimos episódios do afastamento do presidente da Câmara pelo STF e o pedido de prisão deste e de três dos principais senadores brasileiros, sendo dois deles o atual presidente do Senado e um ex-presidente do Senado, do Congresso e da República — ainda que negado este último liminarmente pelo mesmo STF — dão-nos a medida vergonhosa da indigência moral de significativa parcela de nossos representantes no Parlamento.
20/06/2016 - 15h00
Urna eletrônica (Foto: Arquivo Google)
Nelson Paes Leme, O Globo
Os gravíssimos episódios do afastamento do presidente da Câmara pelo STF e o pedido de prisão deste e de três dos principais senadores brasileiros, sendo dois deles o atual presidente do Senado e um ex-presidente do Senado, do Congresso e da República — ainda que negado este último liminarmente pelo mesmo STF — dão-nos a medida vergonhosa da indigência moral de significativa parcela de nossos representantes no Parlamento.
Isto pelo singelo fato de todos esses parlamentares terem sido eleitos por seus pares. E quem colocou esses pares (e ímpares) no poder? Nós, os eleitores. Não adianta tentar exportar a culpa.
A democracia representativa é a evolução da democracia direta. Pode (e deve) ser combinada com esta, como previsto em nossa atual Constituição, através do referendo, do plebiscito e da iniciativa popular. E lá estão em nossa Carta esses dispositivos constitucionais exatamente para contrabalançar a representação, quando o povo se dá conta de que seus representantes não funcionam ou funcionam mal.
Infelizmente, não mais dispomos do “mandato imperativo”, instituído por José Bonifácio em 1822, na Independência, uma espécie do recall americano. Mesmo assim, ainda hoje, eleitos pelo voto direto e secreto, quando esses mesmos representantes são incapazes de atender adequadamente às demandas da sociedade, o povo pode se manifestar.
O que não se divulga — fundamental destacar — é o fato de que, mesmo um projeto de lei de iniciativa popular, ainda que carregando o peso expressivo de milhões de assinaturas, precisa ser referendado pelos representantes eleitos, suas excelências hoje investigadas. E que referendos e plebiscitos dependem sempre também do apoio final desses mesmos parlamentares para que o povo efetivamente se manifeste.
Nas democracias, procura-se ao máximo a participação colegiada. Daí a importância dos plenários, das maiorias simples e qualificadas, na proporção da importância dos temas a serem votados. Quando, porém, essas decisões são frutos de sórdidas barganhas e conchavos de baixo teor moral, detecta-se a patologia na representação, e o povo reage, na sua condição de coletividade mais densa, fonte original de todo o poder constitucional que é.
Falam as ruas indignadas. Mas são imensos os obstáculos para sua manifestação constitucional objetiva. Vide o ritual torturante do impeachment. Surge daí a importância transcendental do chamado “voto consciente”, esse canhestro pleonasmo, pois todo voto deveria ser, por natureza, consciente.
O voto é uma procuração (um mandato) com poderes quase ilimitados outorgados ao representante para lidar com bilhões, trilhões de reais e resolver problemas cruciais da vida coletiva, como saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, saneamento, infraestrutura, finanças públicas e economia popular.
Ninguém nomeia um procurador privado sem ter a mais absoluta confiança no outorgado dessa procuração. Mas quando chega a hora decisiva de nomear esse outorgado mandatário público, agimos todos de modo inconsequente, irresponsável e leviano. Raramente alguém se lembra em quem votou nas últimas eleições... Seria o mandato público menos importante do que o mandato privado, a procuração?
Ao contrário, a coisa pública a todos pertence. São valores coletivos. Do interesse público, da res publica. Mas nossos mandatários outorgados não se comportam como procuradores fiéis, republicanos. Ao assumirem seus mandatos já começam a se comportar de modo perdulário.
Gabinetes faustosamente recheados de assessores dispensáveis, auxílio-moradia, cotas de passagens aéreas, reembolsos nem sempre razoáveis, carros oficiais de última geração etc.
Um mundo fantasioso, muito distante das agruras vividas diariamente por seus outorgantes representados que se aglomeram nos transportes públicos de baixa qualidade, nas filas e corredores dos hospitais superlotados e falidos. Quanto mais inculto e deseducado o país, maiores e mais vergonhosas essas benesses com o suado dinheiro dos contribuintes.
Surge então, nos parlamentos, um sólido espírito de corporação que fala mais alto do que o espírito público. Raríssimos são os que se insurgem publicamente e denunciam essa vergonha corporativa.
É esse mesmo espírito de corporação — em oposição ao espírito público — que propicia os ignominiosos “blocos parlamentares", esses “centrões” inideológicos e sordidamente pragmáticos, terreno fértil do vergonhoso presidencialismo de cooptação e favores, gerador do estado de calamidade política e econômica em que nos encontramos.
As multidões explicitamente nas ruas condenam essa postura. Mas entra governo, sai governo, e o voto leviano se sucede. A obediência reverente a essa lógica perversa pelo governo que acaba de assumir não deixa dúvidas de que esse modelo está apodrecido.
As acrobacias que faz para não desagradar a essa corporação legislativa espúria — da qual depende vitalmente para aprovar suas mínimas propostas de correção de rumos do nosso descalabro político e econômico — são peças de uma tragicomédia permanente.
E aí, estabelece-se a grande e irrespondível contradição: só podemos mudar isso pelo voto. Dentro de apenas poucos meses, teremos eleições para prefeitos e vereadores. Alguém aí já tem um bom candidato?
Nelson Paes Leme é cientista político
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POLÍTICA E ECONOMIA