Sigilo do sigilo
Nem mesmo os auditores fiscais da Receita Federal têm como saber quem aderiu ao programa de regularização de ativos mantidos no exterior. Por determinação interna e sigilosa da Receita, os CPFs e CNPJs dos participantes do programa nos sistemas do Fisco foram substituídos pelo CNPJ da Secretaria da Receita Federal. Ou seja, é impossível conhecer os verdadeiros donos do dinheiro que aportou no país.
A medida foi adotada “para proteger o sigilo fiscal dos contribuintes que aderiram ao Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT)”, o nome oficial do programa. O aviso está na Nota Arrecadação 006/2016, assinada pelos responsáveis pela Coordenadoria-Geral de Arrecadação e Cobrança (Codac) e pela Coordenadoria Especial de Ressarcimento, Compensação e Restituição (Corec), ambos órgãos de cúpula da Receita, em novembro.
Essa orientação impede que os auditores tenham acesso a quem aderiu ao programa e aos documentos de arrecadação (Darf) que comprovam o pagamento de impostos. Isso significa que não podem cruzar esses dados com outros referentes à situação tributária de quem aderiu ao programa, para fins de fiscalização.
“Isso é inédito na Receita Federal”, diz o auditor Kleber Cabral, presidente da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Unafisco). “Criou-se um sigilo do sigilo fiscal: as pessoas ou empresas que aderiram ao programa de regularização passaram a ter mais proteção do que o contribuinte comum. É uma ocultação desses CPFs e CNPJs não prevista em lei e sem norma específica para criar essa proteção especial injustificada”, comenta.
Contribuintes especiais
A Receita afirma que se trata de uma questão tecnológica de organização interna, e não de “proteção especial”. Em nota enviada à ConJur nesta sexta-feira (5/5), a Secretaria da Receita diz que “os documentos de arrecadação do RERCT compõem uma base de dados específica. Por isso na base de dados geral de pagamentos eles não são identificados”.
O presidente da Unafisco, no entanto, não vê sentido na explicação. Para ele, trata-se de uma “proteção indevida que pode atrapalhar o trabalho da fiscalização pela falta de uma informação que deveria estar disponível”.
Cabral conta que o sistema da Receita é integrado, e os auditores têm acesso tanto ao banco de dados quanto ao “Dossiê Integrado”. Esse dossiê é um documento com todas as informações de que o Fisco dispõe sobre um contribuinte: as declarações de renda, os informes de rendimento feitos pelo banco, os relatórios de empresas de cartão de crédito etc.
Mas com a substituição do CPF dos participantes do programa de regularização pelo CNPJ da Secretaria de Receita, o Dossiê Integrado fica incompleto. “Só duas pessoas no Brasil têm acesso a isso”, diz Cabral, em referência aos coordenadores da Corec e da Codac. “Os auditores não têm acesso, mas a cúpula da Receita tem. É uma jogada para dar ‘segurança’ pro declarante.”
Caixa preta
A regra já produz seus efeitos, diz Kleber Cabral. A deflagração da última fase da operação "lava jato" é prova disso: no despacho que mandou prender um diretor da Petrobras, o juiz federal Sergio Moro diz que ele usou do programa de regularização para lavar dinheiro recebido como forma de suborno e mantido num banco nas Bahamas.
De acordo com o Ministério Público Federal, o executivo havia declarado renda de R$ 14,3 milhões e, depois que aderiu ao programa, informou manter R$ 47,9 milhões nas Bahamas. O MPF só conseguiu ter acesso a essa informação porque a Justiça Federal autorizou a quebra de sigilo bancário e fiscal do diretor da Petrobras, porque o programa de regularização protege os contribuintes desse tipo de acusação.
É uma reclamação feita por auditores fiscais desde que se discute a implantação de um programa de repatriação de dinheiro mantido no exterior sem avisar o Fisco. Em audiências públicas e manifestações no Congresso, reclamavam do fato de a lei brasileira eximir quem quisesse aderir ao programa de comprovar a origem legal do dinheiro.
Isso, afirmam, permitiu a regularização de dinheiro mantido fora do Brasil justamente por sua origem ilegal. O caso do diretor da Petrobras preso na última fase da “lava jato” só mostra o que já se falava há muito tempo, acredita Kleber Cabral. Por isso os servidores gostaram da fala do procurador da República Diogo Castor de Matos de que a operação “deve abrir a caixa preta dessa lei de regularização cambial e verificar de que forma está se dando esse procedimento”, conforme disse ao jornal O Estado de S. Paulo.
Clique aqui para ler a Nota Arrecadação 006/2016 Codac/Corec da Receita Federal
CONJUR
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